É Pecado Comer Carne Vermelha na Sexta-Feira Santa?

 


Introdução: Um Dia de Silêncio e Memória

A Sexta-Feira Santa é o ápice da Semana Santa, momento em que a Igreja Católica mergulha no mistério da Paixão de Cristo. Neste dia, não celebramos a Eucaristia, mas a Liturgia da Paixão do Senhor, com a adoração da cruz e a comunhão dos santos óleos consagrados na Quinta-Feira Santa. A abstinência de carne vermelha integra-se a esse contexto de penitência e contemplação, mas seu significado vai muito além de uma simples regra alimentar.

A Origem Histórica: Do Jejum à Abstinência

Raízes Judaicas e os Primeiros Cristãos

A prática de evitar certos alimentos remonta ao Antigo Testamento. Em Levítico 11, Deus estabelece critérios sobre animais puros e impuros. Para os judeus, o jejum era um ato de purificação e arrependimento, como visto no Dia da Expiação (Yom Kippur). Os primeiros cristãos, muitos de origem judaica, adaptaram essas práticas, abstendo-se de carne em dias específicos como sinal de luto pela morte de Jesus.

No século II, escritores como Tertuliano mencionam a abstinência de carne às sextas-feiras como forma de identificação com o sofrimento de Cristo. O peixe, por sua vez, tornou-se símbolo cristão primitivo — a palavra grega ICHTHYS (ἰχθύς) era um acrônimo para “Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr” (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador).

Consolidação na Idade Média

No Concílio de Benevento (1091), a Igreja formalizou a abstinência de carne às sextas-feiras, vinculando-a à memória da crucifixão. A carne vermelha, associada a banquetes aristocráticos, contrastava com a simplicidade do peixe, alimento comum entre pescadores como Pedro e André.

Adaptações ao Longo dos Séculos

Durante a Peste Negra (século XIV), bispos dispensaram a abstinência para fortalecer doentes — um precedente que reforça o princípio de que “a caridade está acima da norma”. No século XX, o Código de Direito Canônico de 1917 simplificou as regras, limitando a abstinência obrigatória a dias específicos.

Fundamentos Bíblicos: Jejum que Agrada a Deus

Profetas e a Crítica ao Jejum Vazio

O livro de Isaías (58:3-7) denuncia o jejum hipócrita: “Por que jejuamos, e não o vês? […] Acaso não é este o jejum que escolhi: soltar as cadeias injustas?”. A abstinência de carne, portanto, só tem valor se acompanhada de justiça social e conversão interior.

Jesus e o Jejum no Deserto

Os 40 dias de Jesus no deserto (Mateus 4:1-11) são o modelo da Quaresma. Ao renunciar ao pão, Ele ensina que “nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. O jejum alimentar, assim, deve gerar fome de espiritualidade, não apenas saciar obrigações.

São Paulo e a Liberdade Cristã

Em Romanos 14:1-3, Paulo afirma que “o Reino de Deus não é comida nem bebida”, mas adverte em Gálatas 5:13: “Não useis da liberdade para dar ocasião à carne”. O equilíbrio está em submeter o corpo ao espírito, como ele mesmo exemplifica: “Castigo meu corpo e o reduzo à escravidão” (1 Coríntios 9:27).

O Ensino da Igreja Hoje: Normas e Espírito

Código de Direito Canônico (Cân. 1250-1251)

A lei eclesiástica atual estabelece:

  • Abstinência obrigatória: Todas as sextas-feiras do ano, mas especificamente na Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira Santa.

  • Jejum: Apenas nesses dois dias, com uma refeição completa + duas menores para maiores de 18 e menores de 60 anos.

  • Substituição por obras de caridade: Autorizada por conferências episcopais, como a CNBB no Brasil.

Pecado Mortal? Contexto e Intenção

A Igreja distingue entre:

  1. Violação involuntária (esquecimento, necessidade física): Sem culpa moral.

  2. Desobediência consciente: Pode configurar pecado grave se houver desprezo deliberado pela autoridade da Igreja.

O que diz o Catecismo?

O CIC 1434 explica: “O jejum corporal que a Igreja prescreve […] abre o coração ao próximo e a Deus”. A abstinência, portanto, é um exercício de liberdade, não uma prisão.

Práticas Concretas: Como Viver Este Dia?

Alternativas Alimentares com Sentido

  • Peixes simbólicos: O bacalhau, comum na tradição portuguesa, lembra os marinheiros que difundiram a fé; o salmonete, associado à multiplicação dos pães.

  • Vegetarianismo quaresmal: Grão-de-bico (usado no Oriente Médio desde os tempos bíblicos) e lentilhas (referência à sopa de Esaú em Gênesis 25:34).

  • Pão ázimo: Preparado sem fermento, remete à Última Ceia e ao êxodo do Egito.

Jejuar Além da Mesa: Sugestões Práticas

O Papa Francisco, na Mensagem para a Quaresma de 2021, propôs três dimensões do jejum:

  1. Jejum do consumismo: Doar roupas ou alimentos a quem precisa.

  2. Jejum do digital: Reduzir o tempo em redes sociais para rezar o Terço da Misericórdia.

  3. Jejum da indiferença: Visitar idosos ou pessoas em situação de solidão.

Exemplos de Comunidades Católicas

Na Arquidiocese de São Paulo, muitas paróquias organizam “almoços solidários” na Sexta-Feira Santa: os fiéis comem peixe simples e doam o valor economizado para projetos sociais.

Dúvidas Comuns: Respondidas pela Tradição

“Frango ou porco são permitidos?”

Não. A regra aplica-se a todos os animais de sangue quente (mamíferos e aves), conforme definido pelo Pontifício Conselho para os Textos Legislativos em 2003.

“E se eu não gostar de peixe?”

A Igreja permite substituir por outros alimentos simples, como ovos, arroz ou legumes. O essencial é a renúncia voluntária, não o gosto pessoal.

“Posso beber café ou refrigerante?”

Sim. A abstinência refere-se apenas a carne vermelha, não a líquidos. Porém, recomenda-se moderação, em espírito de sobriedade quaresmal.

“Crianças precisam obedecer à regra?”

O Cân. 1252 isenta menores de 14 anos, mas incentiva famílias a introduzirem a prática de forma pedagógica e não coercitiva.

Conclusão: Um Sacrifício que Liberta

A abstinência de carne na Sexta-Feira Santa não é um fim, mas um caminho de comunhão com Cristo crucificado. Como escreveu São João Crisóstomo: “O jejum é a alma da oração, a misericórdia é a vida do jejum”.

Que este gesto nos una ao coração da Igreja e renove nosso compromisso com o Evangelho.

 

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